
A questão dos suicídio ou as questões, não morreram ainda, na verdade são bem atuais. Percebe-se que o ato suicida tem como característica o fato de ser clandestino, ou seja, sem testemunhos, dissimulado, ocorrendo como se estivesse transgredindo regras expressas por nossa sociedade capitalista na qual a morte é banida, não enfrentada e evitada. Segundo Sampaio & Boemer, o suicida, de certa forma, ainda é compreendido como um transgressor, porém, de regras legitimadas pela cultura social.
A postura dos profissionais da saúde têm evidenciado seu despreparo na assistência às pessoas que tentaram o suicídio, expresso pelo desprezo, agressividade e preconceito com que alguns as tratam.As dificuldades dos profissionais de saúde acerca desse tema precisam ser repensadas e trabalhadas em várias instâncias educativas, de forma que a dignidade das pessoas que atentam contra a própria vida possa ser respeitada e preservada. (Sampaio & Boemmer, 2000)
Entendemos desde já que o suicídio é viabilizado a partir de uma visão de mundo, no qual o homem cria uma realidade artificial, difícil de se abrigar e acolher, dando uma sensação de habitar a inospitalidade. (Camon, 2002). Observamos essa atitude como alternativa para devaneios e sofrimentos existenciais, algumas pessoas não estão necessariamente buscando a morte. O suicida muitas vezes se encontra num momento obscuro, onde as angústias vividas se tornam sem soluções, sem possibilidades de mudanças. Sem perspectivas o indivíduo não se ressignifica.
Freud ressalta que o processo psíquico que pode levar um indivíduo a desistir da vida de forma tão abrupta provavelmente seria através da pulsão de morte, onde o retorno à matéria inorgânica provocaria a ausência de tensões. As tensões representam para os suicídas forças que levam a uma incapacidade de suportar frustrações regredindo ao estado de desamparo; poder sobre o próprio destino, sobre a vida e a morte e, de certa maneira sobre o outro, sobre ainda daquele que se quis atingir com tal gesto. Freud, assim disse “[…] não se pode esquecer que o suicídio não é nada mais que uma saída, uma ação; um término de conflito psíquico”. (Siqueira, 2012)
Segundo Abadi, (citado em Bastos, 2009), a perda de um objeto libidinal valioso pode ser também uma das grandes motivações para o suicídio. Desaparecer da vida é o forte desejo da pessoa em comportamento autodestrutivo, tal como desapareceu para ela o seu objeto amado. Em outras palavras, o desejo de pretensamente obter novamente o indivíduo querido que morreu, por exemplo, é tão intenso que diante da impossibilidade de recuperá-lo na realidade consensual, tal pessoa não só se identifica de forma extremamente narcisista com o objeto perdido, como também pode destruir-se para acompanhá-lo ou tê-lo de volta, em sua fantasia.
Em termos gerais, na psicanálise, o suicidio poderia estar ligado tanto as neuroses quanto as psicoses, na maioria das vezes representado em estados limites. A gênese se dá por multiplos fatores ainda que se enfatize as vivências infantis e os conflitos interiores.Como exemplo, podemos citar as identificações narcísicas, o luto não superado, a fragmentação egóica, a passagem ao ato, entre outros.
O suicídio em Winnicott
Apesar de não haver publicado qualquer artigo específico sobre o suicídio, as características dos casos atendidos por Winnicott levaram-no a manter constante atenção sobre o tema e as citações a respeito podem ser encontradas em grande número de seus trabalhos.(Faria,2007).
Podemos tentar compreender o suicídio em Winnicott a partir da sua teoria do amadurecimento. No caso clínico específico do suicídio (e mesmo para a gênese de muitas outras psicopatologias), destaca-se a importância do impedimento da realização do ser, ou seja, do seu amadurecimento, como o ponto desencadeador das ideações suicidas. Assim, o autor considera que o impulso autodestrutivo pode estar presente já na infância, oculto sob uma inocente esfregação dos olhos (Winnicott, 1944). Pode também permear a luta do adolescente para tornar-se real, ou a percepção do adulto sobre a vacuidade de suas incursões pela vida profissional, amorosa ou social. (Faria, 2007).
Winnicott não possuía uma técnica única para aplicar no tratamento dos casos que atendia, uma vez que não há dois casos iguais. Como afirmou o autor: “o terapeuta deverá estar envolvido em cada caso como pessoa, razão pela qual não há sequer duas entrevistas que sejam semelhantes quando realizada por dois psiquiatras”. (Dias, 2008) Porém, Winnicott valia-se, principalmente, de diagnósticos e da sua teoria do amadurecimento como guia de suas práticas clínicas. O amadurecimento consiste uma tendência inata de integração do indivíduo em uma unidade, e, para que ele ocorra, o ambienta precisa fornecer ao bebê cuidados suficientemente bons. Segundo a autora Elsa Dias (Dias,2003), “apesar de o processo de amadurecimento não ser linear, algumas conquistas têm pré-requisitos e só podem ser alcançadas depois de outras, que são a sua condição de possibilidade.
Ou seja, a resolução satisfatória das tarefas de cada estágio depende de ter havido sucesso na resolução das tarefas dos estágios anteriores. Se ocorre fracasso na resolução da tarefa de uma certa etapa, novas tarefas vão surgindo, mas o indivíduo, não tendo feito a aquisição anterior, carece da maturidade necessária para fazer-lhes frente; ele pode até resolvê-las, mobilizando a mente e/ou uma integração defensiva do tipo falso si-mesmo, mas, apoiadas em bases falsas elas não farão parte intrínseca do seu si-mesmo como aquisições pessoais. Nesse caso, o processo de amadurecimento pessoal é paralisado e um distúrbio emocional se estabelece.”
Tal explicação de Dias (Dias,2003), traz algumas informações importantes à cerca do insucesso do desenvolvimento de algum estágio do amadurecimento e do surgimento do falso si-mesmo. E este é um ponto chave para tentarmos compreender o suicídio, assim como muitas psicopatologias, como Winnicott o faria.
O suicídio pode ser cometido ou idealizado tanto por pessoas que se encontram em um estado regredido de grande dependência, como também por pessoas que estão aparentemente “normais”. Para compreensão do suicídio nesses diferentes quadros, é importante ater-se à cisão do ego em verdadeiro e falso si-mesmo, como uma das principais raízes do problema que impendem o desenvolvimento ótimo do ser e podem acabar culminando num mecanismo de defesa tão profundo que acaba por torna-se um dos principais pilares da constituição do self (o que configura o falso self), podendo gerar no indivíduo um grande vácuo afetivo e uma forte sensação de angústia.
Para Winnicott, o bebê nasce sem a capacidade de diferenciar-se do mundo, sem a capacidade de relacionar-se com objetos e separar-se deles. Conforme progride o desenvolvimento, o bebê vai se integrando, até alcançar uma imagem unificada de si e do mundo. A mãe nesse sentido tem papel de prover a proteção necessária desse momento tão frágil e de atentar-se aos movimentos do bebê, dando sentido a eles: quando a criança chora ou da sinais de que está com fome, a mãe responde e oferece o peito, dando sentido às percepções e atividades motoras do bebê. A mãe-ambiente que deixa de responder ao gesto da criança, seja ao ausentar-se, seja impondo a ela e submetendo-a ao o seu próprio gesto sem que haja requerimento, prejudica o seu desenvolvimento, trazendo à criança a sensação de falta de controle, de inutilidade dos seus gestos. Esta situação caracterizaria a primeira fase do falso self, que constitui uma defesa em resposta a uma falha ambiental, ocultando o verdadeiro si-mesmo e protegendo-o de um aniquilamento.
Dependendo do estágio do desenvolvimento e do modo com essa defesa se organiza, o sujeito pode desde utilizar-se do falso si-mesmo como auxilio na constituição das relações de vida normal até o extremo de um isolamento total do self verdadeiro, em que toda espontaneidade e criatividade estariam ausentes. Assim, a força do falso self pode ter diferentes sentidos na vida de um indivíduo. O que vemos em muitos casos de suicídio foi muito bem descrito por Faria (Faria, 2007), numa situação em que :
“Existe uma vida secreta e somente aí o indivíduo pode se sentir real, mas isso não é suficiente e ele se sente atingido em sua essência, em cada situação em que precisa respeitar ou se submeter às condições da realidade compartilhada. Nesses casos, o que pode nos aparecer clinicamente é uma busca constante de realização, fundada numa angustiante percepção, do indivíduo, de que suas relações com a realidade e com os outros se esgarçam antes que ele possa se inteirar delas, de modo que ele se vê, sempre e sempre, transformado na sombra de suas próprias possibilidades, que jamais se concretizam. Em tais situações, em que existe a percepção de que algo se perde a cada instante, numa vida que ainda não se tornou vida, o ser permanece suspenso sobre o abismo do aniquilamento, na expectativa de que o falso si–mesmo cumpra sua função de possibilitar a emergência do verdadeiro si–mesmo.
Quando as condições para a emergência do verdadeiro si–mesmo não ocorrem, para Winnicott, podem se organizar novas defesas contra a sua expoliação e, se houver dúvida, o resultado poderá ser o suicídio. Mas dirá ele ainda, sobre o gesto de esperança de considerar o suicídio como o único gesto espontâneo, numa tentativa de evitar o aniquilamento do si–mesmo verdadeiro. O falso si-mesmo se encarregará do ato, mobilizando estratégias próprias.
Em busca de um manejo adequado
A importância do conceito de manejo na clínica winnicottiana dá-se pelo contraponto que esta faz com a ideia estabelecida do fazer psicanalítico tradicional. À medida que Winnicott apoia-se na sua prática clínica para construir sua teoria do amadurecimento humano, fica clara a impossibilidade de se conceber o trabalho do psicanalista apenas como a interpretação do conteúdo inconsciente recalcado resultante de conflitos de natureza edípica. Neste trecho ele aponta, de maneira bem simples mas muito ilustrativa, como ele concebe a avaliação da condição do paciente para planejamento da terapia: “faço análise porque é do que o paciente necessita. Se o paciente não necessita de análise então faço alguma outra coisa.” (WINNICOTT, 1965, p.32). Esta “alguma outra coisa” trata-se, pois, do manejo.
O manejo pode ser entendido como o conjunto de ajustes técnicos no setting, visando atender às necessidades de cada paciente, restabelecer sua saúde e garantir sua continuidade no processo de amadurecimento pessoal. É manejo aquilo que o terapeuta faz espontaneamente, como um gesto inercial e aquilo que ele efetivamente planeja como intervenção, objetivando o bem estar do paciente. (DIAS, 2014). Ao ler os relatos de caso de Winnicott e os autorrelatos de alguns pacientes seus, como o de Margaret Little (LITTLE, 1990), encontramos uma grande quantidade de relatos de casos nos quais ele se valeu do manejo como alternativa à interpretação clássica, como formulada por Freud. O manejo torna-se, portanto, à luz da teoria do amadurecimento winnicottiana e juntamente com a interpretação, a tarefa do analista e faz-se essencial nos casos cuja etiologia da doença é a falha ambiental em estágios muito primitivos do amadurecimento. (DIAS, 2014). Falhas – sendo elas provocadas pelo excesso intrusivo ou pela privação -, vividas em um estágio cuja integração é ainda incipiente, podem marcar profundamente o modo como o sujeito se relaciona com o ambiente e consigo mesmo, fazendo-o sentir uma ruptura na sua linha da vida. Se o sujeito não tem espaço para ser espontaneamente ou não tem legitimados pelo ambiente seus atos espontâneos, é muito provável que ele vá criar mecanismos defensivos, falsos si-mesmos para responder às demandas ambientais, em detrimento daquilo que é seu, do que ele efetivamente é como pessoa. Daí surge a sensação de estranhamento da realidade, o sentimento de não pertencimento ao mundo, de estar vivo sem, no entendo, conseguir habitar subjetivamente a própria vida. Viver passa a ser, nesses casos, um gesto vazio, sem sentido e aparentemente desnecessário. Esta constituição pode levar o sujeito ao suicídio.
Em alguns pacientes, a busca compulsiva da morte responde à necessidade de retornar à ruptura do sentimento de continuidade da linha da vida para experimentá-lo enfim, para tentar recuperar pelo suicídio o controle de um aniquilamento que já ocorreu. Trazer à tona o que, de certa maneira, não pôde aflorar. “Muitos são os homens e mulheres que passam a vida se perguntando se a solução é o suicídio, ou seja, levar seus corpos à morte que já ocorreu na psique.” (WINNICOTT, 1974, p. 41 apud CHAMOND, 2010)
Diante de pacientes com ideação suicida, o psicanalista é, pois, convidado a exercer o seu melhor holding, a efetuar manejos cuidadosos a fim de impedir que o paciente veja a morte como a única saída, além de ficar atento aos sinais de cura, para que o assujeitamento do falso self ao tratamento não forje uma situação equivocada de melhora. Cabe a ele diagnosticar o ponto do amadurecimento em que o ambiente falhou e criar provisões para que o sujeito possa vir a ser. Cabe, ainda, a ele, tornar o setting confiável e assumir o papel de ambiente que sustenta no tempo e no espaço, o gesto espontâneo do sujeito, assim como faz um cuidador suficientemente bom:
O analista deve dispor de toda a paciência, tolerância e confiabilidade da mãe devotada ao bebê. Deve reconhecer que os desejos do paciente são necessidades. Deve deixar de lado quaisquer outros interesses a fim de estar disponível e ser pontual e objetivo. E deve parecer querer dar o que na verdade precisa ser dado apenas em razão das necessidades do paciente. (WINNICOTT, 1947/2000, p. 287)
Somente assim poderá emergir o verdadeiro si-mesmo, o paciente poderá regredir à dependência e encontrar um ambiente confiável, previsível e que o contenha, permitindo que ele exista de um modo que faça sentido pra ele, permitindo que, além de estar vivo, ele “seja”. Esta postura é possível a partir da utilização da ética do cuidado como guia para a prática. Este é um conceito também cunhado por Winnicott que se desenvolveu a partir do estudo dos vários sentidos que a palavra “cuidado” possui e dos seus desdobramentos para a clínica. LOPARIC (2013), em seu texto “A ética da lei e a ética do cuidado” nomeia, como um dos significados da palavra cuidado na obra de Winnicott, “(…) o fator essencial da formação da existência psicossomática e da posterior socialização dos indivíduos humanos: provisão ambiental.” (p.35). Esta é a ideia de cuidado referente ao cuidado materno dos primeiros anos de vida, mas que vale também para orientar o trabalho psicanalítico com pacientes em geral e também para aqueles em risco de suicídio, pois, no mesmo texto, um pouco mais a frente, ele aponta que é a preocupação materna, ativa, devotada e adaptativa que permite que o bebê constitua sua capacidade de levar “uma vida criativa que, seja ela boa ou não, tenha valor e valha a pena ser vivida.” (p.35, itálicos do autor)
O analista, enquanto oferece o seu setting e o seu trabalho como ambiente seguro para que o paciente alcance a saúde, deve “assumir o lugar de quem cuida”, estar disponível para “deixar ser o outro como é e como pode ser, independentemente da possibilidade de ser do outro que se apresente em um dado momento da relação terapêutica.” (DIAS, 2013, p.35, itálicos da autora).
A busca por um manejo adequado ao tratamento de pacientes em risco de suicídio vai ser construído caso-a-caso, observando-se as necessidades individuais de cada paciente, levando em consideração o caráter eminentemente regressivo destes casos, respeitando o seu sofrimento e oferecendo a ele o melhor cuidado que o analista for capaz de despender.
Encontrando motivos para viver
Dos inúmeros casos relatados por Winnicott, um dos mais emblemáticos talvez seja o de Margareth Little, mulher impulsiva e de personalidade muito forte que exteriorizava sua agressividade atacando as pessoas e os ambientes em que se encontrava, inclusive o analítico. Pertencendo a um estado limite de comportamento, requeria do seu analista uma paciência extraordinária.
Quando procurou Winnicott vinha tendo ideações suicidas e sentimentos paranóicos evidentes de que as pessoas estavam se afastando dela e sua vida já não fazia mais sentido. Acolhendo-a, presenciou uma série de desventuras, sendo que uma delas representou, para a relação transferencial estabelecida, uma catarse solucionadora.
M.Little entrou um dia no consultório e desferindo sucessivos investimentos de fúria contra seu analista, pegou o seu objeto favorito, um vaso de margaridas, e o lançou ao chão quebrando-o em pedaços.
Para confirmar sua desaprovação, Winnicott tomou uma decisão sábia: deixou-a refletindo sobre sua atitude enquanto metabolizava aquela situação. Não era um abandono, apenas uma tentativa de mostrar à paciente que as atitudes tem repercussão nas relações que ela estabelece no mundo.
Voltando ao consultório ele percebeu Margareth tentando reparar aquele comportamento, falava da possibilidade de colar os fragmentos do vaso. Consolando-a, Winnicott retomou a análise.
O vaso de margaridas era como ela, sua projeção. Atacava o que não suportava em si. O vaso de água era o falso self em que repousava e permanecia vivendo na ausência da autenticidade, escondendo suas potencialidades. Pôde perceber que, mesmo tendo espatifado, as flores que sustentava permaneciam intactas, prontas para se libertarem. As margaridas consistiam no verdadeiro self mascarado pelo vaso, escondido, protegido a qualquer custo.
Após aquela sessão, as coisas foram mudando e a continuidade do seu ser que fora interrompida em algum momento do seu processo de amadurecimento, retornou ao seu curso devido. As ideações suicidas foram diminuindo até serem extintas, pode controlar melhor sua impulsividade e utilizá-la de forma mais criativa, além disso, tambem passou a elaborar de maneira diferente sua relação com as pessoas.
Observando o mundo contemporâneo, percebemos a grande doença que envolve uma sociedade mergulhada em ideais a serem alcançados, uma postura condenativa de evitar os sofrimentos existenciais sem perceber o seu papel no desenvolvimento e constituição psíquica. Vivemos uma realidade trágica que o avanço da ciência não consegue responder ou lidar, aliado a isso vem a morte da experiência religiosa, o absurdamento e a sensação do vazio. As singularidades são desmentidas e ignoradas, o processo mercantil definiu um modelo de vida determinado por regras específicas.
Para contornar a falta e a dor que não podem ser sentidos na nossa sociedade, as pessoas envolvem-se em vícios, drogadições, rituais de auto-flagelamento, apatia, abulia, solidão. No final das contas, o suicidio é só uma marca de encerramento, elas já vão morrendo aos poucos e o psiquismo, na verdade já está morto há muito tempo,só restando o corpo para ser extinto.
“A metamorfose” de Kafka retrata muito bem isso: o caixero viajante se dá conta de uma transformação monstruosa que revela as relações doentias familiares, uma espécie de parasitismo mútuo escondido na rotina severa que enfrentavam. Samsa morreu cansado da vida, assim como grandes personagens reais da história que suicidaram, a diferença é que nós não percebemos neles, motivos consistentes. Lembramos aqui Virgínia Woolf, Tchaikovsky, Kurt Cobain, Robin Williams e os brasileiros Santos Dumont, Getúlio Vargas, Pedro Nava, fora as 804 mil pessoas que cometem suicídio todos os anos segundo a OMS – taxa de 11,4 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes. O Brasil é o oitavo país em número de suicídios. Em 2012, foram registradas 11.821 mortes, sendo 9.198 homens e 2.623 mulheres (taxa de 6,0 para cada grupo de 100 mil habitantes).
Muitos deles eram talentosos, tinham prestígio social, luxos materiais, entre outras coisas. Já não era o suficiente? Não, pois a vida contempla dimensões maiores que a mera satisfação material e se esclarece ou brota mesmo é da autenticidade.
Eles viviam sobre máscaras, personalidades criadas, falsos si-mesmos avassaladores, fechados na individualidade egocentrica e esquecendo-se da singularidade diferencial de cada um deles, que eram raios de sol do verdadeiro self que ultrapassavam a escuridão.
Enraizaram-se em modos de ser determinados, sem provocações, embora fizessem coisas criativas e únicas no âmbito cultural. À luz da teoria winnicottiana, identificamos a possibilidade das falhas no amadurecimento pessoal, o ambiente hostil invasivo, pleno de excessos. Essa pessoas não tiveram os momentos primordiais vividos de maneira saudável e colheram na adultez, os frutos dessa lacuna, expressão do vazio.
O que tem os psicanalistas a fazer? O seu trabalho é preventivo ou remediador? Como atuar nessas situações? Destarte, a clínica deveria ser extendida à conscientização social. Os indivíduos que cometem suicídio são doentes e imaturos (existe também a possibilidade de não serem nada disso). Mas acima das suspeitas psicogênicas, paira a realidade do sofrimento social, das relaçoes patológicas intersubjetivas degradantes.
Sabemos que o caminho para abordar cada paciente é único, pois eles mesmos são únicos, mas determinadas histórias se repetem e evidenciam a negação da sombra, a falsidade, o propósito perverso de certos segmentos sociais, todos convertidos em sintomas amplamente conhecidos pelos psicanalistas.
Sabemos que nem todos terão o mesmo destino de Margareth certamente. Pelo menos, colocarão a existência em análise e nas suas minúcias perceberão as questões que lhe são própias e aquelas da própria situação pós-moderna.
Por que viver então? Porque se quer viver. A vitalidade é inata, um instinto natural. Como sentí-la? Encontrando o sentido ou fazendo-o. De que modo? Criando através do trabalho, experimentando o amor e a responsabilidade, enfrentando o sofrimento, a culpa e a própria morte, pois ninguém escapa da finitude, da falha e da dor. É fácil? Definitivamente não. É o mal estar de existir. Sejamos no entanto conscientes e justos em nossas ações, morrer e deixar de viver são coisas diferentes. Existem os suicídas, mas também os suicidados. De quem é a culpa? Da miséria humana de todos. Deixar de suicidar significa alienar-se aos problemas? Não. É uma vitória sobre a guerra da indiferença, a vitória da ética do cuidado, a conquista da diferenciação e superação do ódio, do medo e do cinismo, a manifestação arquetípica do herói.
Considerações finais
Vimos que quando as condições para a emergência do verdadeiro si-mesmo não ocorrem, nos dirá Winnicott, podem se organizar novas defesas contra a sua expoliação e, se houver dúvida, o resultado poderá ser o suicídio. O suicídio poderá ser o último, e talvez o único gesto espontâneo, numa tentativa de evitar o aniquilamento do si-mesmo verdadeiro, o falso si-mesmo que o organizará e o consumará.(Faria, 2007)
As duas citações iniciais nos ensinam muito sobre a postura que deveríamos tomar diante da mortificação lenta e até sumária da vida na atualidade. Haja vista o nosso conhecimento de que nas angústias experimentadas necessitamos de um ambiente acolhedor ou mesmo da presença de um cuidador suficientemente bom que pode não ter existido em nossos estágios primitivos, então nos enredam grandes questionamentos para refletirmos: qual o nosso papel diante do sofrimento do outro? O que há de nosso na produção ambiental que influência a degenerescência das relações no mundo contemporâneo e que acabam por provocar o vazio e o absurdamento?
A partir de tudo que expomos, entendemos que o suicida quer aliviar suas tensões e esconde um amadurecimento precário, uma formação insegura e desestruturada.Para a psicanálise o trabalho, delineia-se no sentido de trazer à tona a consciência do paciente, que apresenta seus impulsos e desejos reprimidos. O intuito é fortalecer o ego e, sobretudo, levando as modificações das relações internas de objeto, através da eliminação das resistências. Outro veio que possibilita essas intervenções, consta do acesso ao material inconsciente do analisando transformado em transferência, ou seja, a análise segue num percurso obscuro dos processos psicológicos do paciente dirigidos ao analista e derivados de outras relações de objetos anteriores. O que contribuirá de forma definitiva ao atendimento de um suicida. (Siqueira,2012).”Setting” e “holding” têm importância fundamental.
Por fim, como disse Winnicott, lembrado por Lannes, a psicanálise não cura, ainda que seja verdade que um paciente possa fazer uso dessa técnica para alcançar, em processo suplementar, um grau de integração e socialização e descoberta de si mesmo que ele não alcançaria ou não poderia alcançar sem ela. (Lannes,2000) Muito há de se aprender com esse teórico que fez da vida uma existência de grande admiração e gozo, não deixando de compartilhar esse afeto no seu corpo teórico.
Referências Bibliográficas
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CAMON, Valdemar Augusto Angerami. Suicídio: fragmentos de psicoterapia existencial. São Paulo: ed. Pioneira, 2002.
DIAS, E. O. (2003). A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago Editora.
FARIA, Flávio Del Matto. A questão do suicídio na teoria de D. W. Winnicott. Winnicott E-prints volume 2 nº1, série 2 ano.2007.
LANNES, Edson S. Na Fronteira do Viver. Trabalho apresentado no IX Encontro Latino-americano sobre o pensamento de D.W. Winnicott (20 a 22 de outubro de 2000, no Rio de Janeiro).
MAIA, Maria V. C. M. Há crianças que morrem na infância sem ninguém perceber: o falso-self como defesa ao excesso de falta de amor materno.
SAMPAIO, M.A.; BOEMER, M.R. Suicídio – um ensaio em busca de um des-velamento do tema. Rev.Esc.Enf.USP, v.34, n.4, p. 325-31, dez. 2000.
SIQUEIRA, Thomaz D. A. A percepçao psicoterapêutica do suicidio na terceira idade na abordagem fenomenológica existencial. BIUS N°1. 3, 2012.