“A mente tenta ser Deus e o nosso corpo lembra que a gente é bicho” assim coloca Judite, a jovem adulta aprisionada no sanatório moderno e protagonista do filme Boa sorte (2014), assumindo aquilo que viria a ser a moral de toda a sua história. Provocante e avassaladora, ela é uma mulher que vive intensamente seus últimos dias ao mesmo tempo que se preocupa com os rumos de quem se aproxima. Como não se apaixonar?

Essa é a grande questão que enfrenta João, um adolescente perdido, esquecido pelos pais. Ele encontra naquela mulher uma força e um sentido. Ela introduz o “menino” no mundo da loucura e da sexualidade e realiza isso da maneira mais empática possível até quando se vê obrigada a produzir um trauma visual para mudar os rumos do garoto.

Judite e João entendem bem a arte de tomar Fanta com Frontal para ficarem invisíveis. Na verdade, isso não passa de um pretexto irônico para disfarçar a dureza do real: dar contorno plausível ao fato de que poucos são vistos e que a sociedade já está cega no próprio egoísmo, engolidas pela rotina, perdidas por desejos infundados e uma vida sem cor e sem paixão.

Cada um a seu modo tenta sobreviver no sanatório, ainda que se possa questionar o papel das drogas e demais substancias químicas como fatores de diversão e transcendência, percebemos que conseguem driblar o sistema com recursos próprios subjetivos que vem da arte como a música, a pintura e a dança.

Quando João descobre o sexo logo tenta transformá-lo em expressão máxima de amor. E Judite fica ali no meio termo entre a admiração e a vaidade de estar sendo reconhecida no ápice da vulnerabilidade. De estar sendo vista e vivendo o paraíso mesmo na tragédia.  João se despede e ressuscita várias vezes e a sorte só foi compreendida quando ressignifica Judite no leito de morte e escuta suas últimas palavras. Não era só um desejo de purificação ou bons anseios, para que não estivesse contaminado com o HIV, mas um bom presságio, uma vontade genuína que o garoto não passasse pelos mesmos infortúnios que ela nessa vida caótica e injusta.

Judite era órfã de pai e mãe, João, da própria sociedade. Mas havia um motivo para se alegrar: poder lembrar do romance breve registrado na memória e no diário com cores e frases invisíveis como os laços do mundo externo e do subtendido que ficou da impossibilidade concreta. João conseguiu sair dali, voltou a estudar, até se casou e teve filho, arrumou um emprego. Re-viveu!

Fantasmas entre outros fantasmas

A questão da invisibilidade perpassa outros filmes que também problematizam o lugar da loucura na sociedade e o papel da família na passagem entre adolescência e adultez como em Ponto zero (2015) e Garota interrompida (1999).

Em Ponto Zero, Ênio diante de uma apatia familiar atravessa a noite densa pra se descobrir mesmo no terror da vida urbana e adulta. A solidão é tratada de uma maneira abissal. Uma frase marcante é a do seu pai em crise conjugal para confrontar a sua mãe: “Você deveria fazer algo na vida, não apenas obedecê-la. Afinal, é um garoto inteligente, ainda que não pareça”. É um drama similar ao de João em Boa Sorte, só que ao contrário, a mãe é profundamente desinteressada, nega sua existência e sonha com sua independência enquanto o pai enuncia tímidos interesses de continuidade do tratamento e da cura, seu retorno ao seio familiar parece ser indiferente ou indesejável para ambos.

Em contrapartida, Susanna, protagonista do filme Garota Interrompida, se vê presa no hospital psiquiátrico, seus pais também quiseram que ela estivesse lá, e seu batismo se dá pela convivência com outras mulheres, em especial a sociopata Lisa que tem trejeitos sedutores e comportamentos disruptivos semelhantes ao da personagem Judite de Boa Sorte. Susanna é uma moça diagnosticada com transtorno de personalidade borderline que tenta sobreviver aos dilemas da solidão com seu desejo de ser uma escritora de sucesso enquanto observa as peculiaridades das colegas de quarto.

No geral, vemos que a “interrupção” onipresente é apenas uma alcunha de todas essas produções cinematográficas para representarem o desespero que advém da falta, do punitivismo e da negligência do outro quanto aos processos de desenvolvimento e a decadência social dos ritos de passagem, bem como a validação das diferenças. A saúde e o equilíbrio em todos eles parecem estar sob o jugo do destino, portanto uma questão da roda da fortuna na ausência do planejamento familiar: a felicidade como sorte ou azar.

Guilherme Bernardes

Psicoterapia online – Entre em contato (Instagram: @guibernardes_psi)

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