The Burning Bed (Cama Ardente).jpgThe Burning Bed, 1984. Direção: Robert Greenwald. Duração: 1h 40m. Elenco: Paul Le Mat, Farrah Fawcett.

“The Burning Bed”  é um filme que denuncia a questão da violência doméstica contra a mulher. Apesar de antigo, representa uma realidade atual e trágica que não se desfez com tempo. Algumas questões sobre a própria condição humana, a maneira como relacionamos uns com os outros são levantadas ao longo da história e longe de serem respondidas, suscitam reflexões extensas, as quais podemos lançar a compreensão junguiana. O que é ser homem? O que é ser mulher? O que há de masculino na mulher e o que há de feminino no homem? Como se dá a relação entre animus e anima? Qual a importância de tais arquétipos para o processo de auto descoberta? Qual a imagem que formamos dos gêneros? Teriam elas um respaldo na mitologia?

Francine, interpretada por Farrah Fawcett, casase-se com Mickey, interpretado por Paul Le Mat, nos idos da decada de 60. Tendo suportado a recorrente violência do marido e sucessivos espancamentos até matá-lo, ela põe fogo na cama enquanto ele dormia. Francine foi a julgamento e absolvida alegando insanidade temporária.

Roupas curtas ou mesmo um sorriso para os amigos eram motivos de suspeita que alarmavam o ciúme doentio. Os pais dele tão próximos não faziam nada para impedir a violência, que no final das contas era naturalizada. O temperamento mimado e agressivo de Mickey é essencialmente análogo ao de seus pais de quem recebeu a criação. Isso é evidente no filme.

Francine procura por sua mãe em desespero querendo abandoná-lo e voltar para casa, para retomar seus projetos e trabalhar. A mãe novamente reforça o machismo da sociedade patriarcal, fazendo-a mudar de ideia ou melhor aceitar a situação, afinal de contas a culpa era dela em todos os sentidos. A mulher é aquela que provoca e seduz, seu papel diante da natureza seria o de prover a desgraça do homem, pois ela mesmo introduziu o pecado e provocou a queda do paraíso. Todo tipo de agressão é colocado a priori na mulher como fonte das desculpas.

Mickey assim não é agressivo por conta de sua personalidade pouco amadurecida, mas antes pela convivencia com Francine que o provoca, o incita a tomar atitudes radicais, compreendidas e defendidas por todos os familiares em questão.

Francine volta para Mickey e mesmo após o nascimento dos filhos, os espancamentos continuam, as crianças assistem a tudo, assustadas e quietas. Ela procura a assistente social e pede o divórcio. O marido tenta fazer que ela volte para casa, e após ouvir uma firme recusa, sai em disparada com o carro.Como era de se esperar, ele sofre um acidente e Francine muda-se para perto para cuidar dele. Mesmo recuperado ele insiste em que ela volte para ele, e ao ser negado começa novamente a bater nela. Como sempre, os pais dele dão apoio ao filho.

Mickey sempre tenta sabotar seus esforços e desejos, inclusive aquele que diz respeito à vontade de cursar  uma faculdade. A situação vai ficando cada vez pior e por fim, após uma noite trágica de surras, humilhação e estupro, ela espera que ele durma, encharca a cama com gasolina, acende o fogo e vai embora de carro com as crianças.

Karen Signell em seu texto Trabalhando com os sonhos femininos (ZWEIG, C. e ABRAMS, J.,1998, pg 278) diz que vemos e sentimos algumas coisas, socialmente inaceitáveis, que teríamos preferido não reconhecer nem experimentar. Designamos isso como “sombra” referindo àquelas qualidades negativas, a todas as coisas ruins que não se ajustam a nossa imagem consciente de nós mesmos e que banimos da luz da consciência do ego. Os sonhos, segundo ela, têm inúmeros significados, como as camadas de uma cebola; e todos eles verdadeiros.

Para ilustrar isso ela retrata uma paciente chamada Peg que relatava sonhar frequentemente com uma ratasana invadindo a cozinha de sua casa e se debatendo na ratoeira após ser pega. A conclusão que chega em análise é a de que Peg sofria, já há algum tempo, de um resinado persistente; talvez o sonho pudesse lhe dizer o que estava errado na sua vida atual. Seria uma metáfora poética para o seu atual relacionamento, ela percebeu que, na verdade, estava há algum tempo a se debater numa ratoeira; percebeu também que, mais cedo ou mais tarde, precisaria convencer-se acometer o ato implacável mas misericordioso de terminar esse relacionamento. No nível inconsciente, ela sentira o desejo de “trair” por causa da raiva e da insatisfação que o atual parceiro provocava nela. (ZWEIG, C. e ABRAMS, J.,1998, pg 279)

Segundo Signell, nossa intensa e prolongada experiência na família com todos os seus membros competindo por atenção e poder, com suas alianças, segredos e ressentimentos tem um efeito profundo sobre nossas expectativas a respeito de nós mesmos e das outras pessoas na sociedade. Trata-se, em geral, de expectativas inconscientes compartilhadas pela família. Sobre a sombra ela afirma:

Às vezes a sombra está tão distante da consciência e é tão assustadora que a porta não poderá ser aberta até que a pessoa esteja pronta para enfrentá-la, Você pode estar abrindo a porta para todo o pântano do inconsciente e será submergida pela ansiedade arquetípica. Numa maré de entusiasmo (como ocorre nos cursos), você poderá ser arrastada para um “vamos pô tudo a nu e, quanto mais profundo, melhor”; mas sua verdadeira vulnerabilidade precisa ser levada em conta. “Mais profundo” nem sempre é melhor. Afinal de contas, as defesas servem a um propósito. Se você, na sua curiosidade, arrancar a casca de uma ferida cedo demais, ficará com uma ferida exposta, O processo natural de cura leva tempo, Quando você tiver desenvolvido uma “bandagem” protetora para uma ferida profunda, então poderá olhá-la com segurança. (ZWEIG, C. e ABRAMS, J.,1998, pg280)

Francine resistiu duramente e na onda de todos os preconceitos foi levada ao último ato de redenção, o assassinato do marido foi a solução última arrasoadora para uma sombra que transbordava, não se continha. Era o fogo o recurso para incinerar a ira, o elemento da purificação, numa condição de inferioridade e fraqueza imposta. Michael Ventura em “A dança da sombra no palco do casamento” (ZWEIG, C. e ABRAMS, J.,1998; pg 100) afirma que para que o casamento seja um casamento, os encontros entre animas e animus não acontecem por compulsão ou por acidente; deveriam antes ser por intenção. Apesar do encontro com os vários eus e fantasmas não sejam sempre planejados, o relacionamento saudável só se dá a partir da responsabilidade que cada pessoa tem por si mesma e pelo outro. Para esse autor a experiência de um relacionamento é de “duas pessoas compulsivamente trocando cadeiradas ao som de uma seleção musical dos arquétipos interiores uma da outra, animus e anima no sobe-e-desce da gangorra.” Os padrões mantêm-se razoavelmente bem enquanto os pares arquetípicos se sustentam:

Mas uma noite o garotinho dentro dele procura a mamãe dentro dela e em vez disso encontra uma analista de língua afiada que disseca suas entranhas. A menina dentro dela procura o papai dentro dele mas encontra um adorador pagão que quer fazer amor com uma deusa, e isso faz dela uma menina fingindo que é uma deusa para agradar o papai que não passa de um idolatra libidinoso mas… nesse jogo, menina não entra. A mulher se sente atraída pelo machão mas ele, secretamente, procura pela mãe  quando o eu sexual do homem está a serviço de um garotinho interior, não é de surpreender que ele não consiga ou que termine muito depressa. transa com o abandono do paciente e o casal se vê, na cama, como deus e deusa a iluminar os céus mas a psique é uma entidade múltipla e mutável, e nenhum desses pares compatíveis se mantém estável por muito tempo. (ZWEIG, C. e ABRAMS, J.,1998; pg 101)

Os desencontros arquetípicos logo começam e então é um desastre de confrontações que podem levar anos sem chegar a parte alguma.As pessoas se cansam e desistem. E então o ciclo recomeça com outra pessoa. O casamento é um pacto onde tudo isso está presente mas, instintiva ou conscientemente, o que temos nele são duas pessoas atropelando os arquétipos interiores uma da outra, desafiando-os, seduzindo-os, lisonjeando-os, emboscando-os, fazendoos falar, abrindo-se a eles, fugindo deles, violando-os, apaixonando-se por alguns e odiando outros, conhecendo alguns, fazendo amizade com outros.

Um fato da realidade conjugal bem conhecido é que as qualidades citadas pelos parceiros como as que primeiro os atraíram um para o outro coincidem com aquelas que são identificadas como as fontes de conflito no decorrer do relacionamento. As qualidades “atraentes” recebem, com o tempo, novos rótulos; tornam-se as coisas más e difíceis do parceiro, os aspectos de sua personalidade e comportamento que são vistos como problemáticos e negativos. O homem que se sentiu atraído pelo calor, empatia e fácil sociabilidade da esposa poderá, em algum momento futuro, redefinir esses mesmos atributos como “estridência”, “intromissão” e uma maneira “superficial” de se relacionar com os outros. (ZWEIG, C. e ABRAMS, J.,1998; pg 97)

A mulher que inicialmente valorizava o marido pela sua confiabilidade, previsibilidade e pelo senso de segurança que ele lhe oferecia, poderá, ao longo do caminho, condenar essas mesmas qualidades como tediosas, enfadonhas e redutoras. E é assim que os admiráveis e maravilhosos traços do parceiro tornam-se as coisas feias e terríveis que a pessoa gostaria de ter percebido antes. Para Maggie Scarf, embora essas qualidades sejam sempre idênticas, em algum momento do relacionamento elas ganham nomes diferentes. As coisas mais atraentes no parceiro também são, em geral, as que têm maior carga de sentimentos ambivalentes. Vide os atributos de Francine e Mickey e as repercussões deles, como a beleza, riqueza, poder de sedução.

A principal causa de angústia nos relacionamentos íntimos e responsáveis é, na verdade, uma confusão básica entre saber exatamente o que está acontecendo na nossa própria cabeça e o que está acontecendo na cabeça do parceiro. O dilema desse casal torna-se um conflito interpessoal, um conflito que teria de ser constantemente travado entre eles que ocorre por meio da identificação projetiva. Esse termo refere-se a um mecanismo mental muito penetrante, traiçoeiro e geralmente destrutivo, que envolve a projeção dos aspectos negados e reprimidos da experiência interior de uma pessoa sobre o seu parceiro íntimo e, a seguir, a percepção desses sentimentos dissociados como existentes no parceiro. Não apenas os pensamentos e sentimentos indesejáveis são vistos como estando dentro do parceiro, como também o parceiro é encorajado, por meio de “deixas” e provocações, a comportar-se como se eles lá estivessem. (ZWEIG, C. e ABRAMS, J.,1998; pg 97)

A pessoa identifica-se indiretamente com a expressão, pelo parceiro, das emoções, pensamentos e sentimentos reprimidos. Francine uma mulher totalmente não-agressiva e que jamais se enraivece é singularmente destituído de raiva, só pode perceber os sentimentos de raiva à medida que eles existem numa outra pessoa no marido, é mais provável. Frequentemente ela não vai saber que está com raiva, mas vai ficar muito feliz se detonar uma explosão de hostilidade e raiva no marido, como fora na cena do incendio. Segundo Scarf, é muito freqüente que os sentimentos de raiva, reprimidos com tanta firmeza dentro do eu, sejam criticados no parceiro com a mesma severidade, numa situação de identificação projetiva, o marido que jamais se enraivece geralmente se horroriza diante do temperamento violento e das expressões e comportamentos impulsivos e descontrolados da mulher. (ZWEIG, C. e ABRAMS, J.,1998; pg 98)

No Manual de Cambridge para Estudos Junguianos, mais especificamente no texto “Género e Contra-Sexualidade: a Contribuição de Jung e Além” de Polly Young-Eisendrath, compreendemos que  o género é o organizador central da realidade interpessoal. Os mistérios da sexualidade são assim reduzidos a fórmulas sobre diferenças que deveriam existir ou apenas existem. Isso leva a teorias psicológicas sobre o que está faltando, foi deixado ou negligenciado em um ou no outro sexo.(YOUNG-EISENDRATH , P e DAWSON; T, 2002, pg 217)

A autora demarca que a maioria dos teóricos da psicologia profunda tem sido androcêntrica,tomando pessoas do sexo masculino como padrão de saúde e sucesso, a maioria das teorias de género e sexo descreveu as pessoas do sexo feminino em termos de déficit: ausência de pênis, poder, fibra moral, realizações culturais ou inteligência e assumiu que as pessoas do sexo feminino são “por natureza” deprimidas, narcisistas, invejosas.

A psicologia de Jung seria uma exceção no que se refere a isso, pois ele chama a atenção eloquentemente para um tema importante em relação às diferenças sexuais: o sexo oposto é um fator formador de projeções. Ele nos convida a ver aspectos de nós mesmos que são negados à consciência, por serem intoleravelmente horríveis ou idealizados, por meio de nossas projeções nos outros.

A teoria de Jung de anima e animus como arquétipos é uma análise cultural de opostos universais. A anima da teoria de Jung, a subpersonalidade feminina de uma pessoa do sexo masculino, e o animus, a subpersonalidade masculina de uma pessoa do sexo feminino, são evoluções naturais da contra-sexualidade biologicamente orientadas. Embora se desenvolvam durante toda a vida, elas entram em ação especialmente na meia-idade por causa da natureza cambiante do desenvolvimento da identidade nessa época da vida. (YOUNG-EISENDRATH , P e DAWSON; T, 2002, pg 218)Expressados como imagens carregadas de emoção, os arquétipos estruturam o que está latente no sexo oposto em cada um de nós, uma espécie de alma gémea de potenciais tanto ideais quanto desvalorizados. A autora evidencia algo de nossa época em relação a isso:

A maioria de nós, tanto homens quanto mulheres, sente-se desconfortável quando as mulheres ganham mais do que os homens no local de trabalho, quando as mulheres desempenham papéis políticos importantes, e quando as mulheres constituem a maioria  no mundo de hoje. A relativa flexibilidade dos papéis de género e a diferença de poder entre os sexos precisam ser reconhecidas em qualquer abordagem contemporânea de género, dentro e fora do consultório terapêutico. Os significados cambiantes do género, o reconhecimento de que ele é construído, e os efeitos duradouros do domínio masculino são tão significativos para fazermos análise junguiana quanto para revisar a teoria junguiana para que ela seja aplicável à vida contemporânea. Quando as pessoas insistem numa forte divisão entre os sexos, e assumem que as mulheres são por natureza mais relacionais e os homens naturalmente mais autónomos, elas arriscam perder partes de si mesmas para sempre. A externalização destas partes através da projeção, da inveja e da idealização podem tornar-se um estilo de vida. Parceiros amorosos podem ser consciente ou inconscientemente escolhidos por causa de sua disposição em portar partes idealizadas ou desvalorizadas de si mesmo. (YOUNG-EISENDRATH , P e DAWSON; T, 2002, pg 218)

Quando o género é fortemente dicotomizado, num indivíduo ou num grupo, as pessoas perdem partes de si mesmas “provando” que os outros são proprietários exclusivos. Isso explica o ciúme doentio de Mickey. A identidade feminina, de acordo com Young-Eisendrath, foi culturalmente criada como emocionalmente poderosa, muitas vezes de forma negativa, ao passo que se espera que as pessoas do sexo feminino careçam de autoridade e poder de tomada de decisões. Os valentões demoníacos e dominadores, os meninos relacional e evolutivamente incompetentes, os heróis eróticos sensíveis e os amantes andróginos, são exemplos de homens que internalizam projeções de contra-sexualidade feminina.

Para a mesma autora, muitos homens adultos procuram terapia de casais com a queixa de que “eles simplesmente não entendem” e parecem não compreender por que suas parceiras estão reclamando e/ou por que os seus métodos de comunicação não funcionam. Quando a contra-sexu-alidade permanece projetada, ela permeia o mundo ao redor e cria barreiras estas para ulterior desenvolvimento, barreiras estas que podem nunca ser transpostas se uma dicotomia forte dos sexos persistir durante a vida toda. (YOUNG-EISENDRATH , P e DAWSON; T, 2002, pg 222)

Uma abordagem junguiana na psicoterapia de casais seria uma abordagem que elevando à consciência os Outros interiores, cria um espaço dialógico, no qual os parceiros podem encontrar a função transcendente nos conflitos. Ao conter as tensões dos “opostos” projetados e refletir seus significados um para o outro, os parceiros descobrem que seu “casamento” é um “relacionamento psicológico”, como Jung o chamou. O objetivo é pro-teger o espaço seguro, comprometido de uma amizade íntima e ao mesmo tempo assumir responsabilidade pelas exigências primitivas destrutivas e criativas da contra-sexualidade. (YOUNG-EISENDRATH , P e DAWSON; T, 2002, pg 228) Embora o conflito e a diferença sejam sempre componentes de uma amizade íntima, especialmente num casamento ou parceria compromissada, eles assumem novos significados quando se tornam um desvelamento progressivo das ver-dades a nosso respeito enquanto humanos.

Liz Greene em “Maldição Familiar’ do livro: “A astrologia do destino” afirma que as famílias são organismos, e a vida psíquica de um emaranhado familiar é um circulo fechado, onde dramas emocionais antigos e muitas vezes violentos são encenados na escuridão secreta do inconsciente. O mito seria nesse contexto uma fonte de imenso valor para a compreensão dos padrões arquetípicos que dominam famílias geração após geração. A imagem da maldição familiar, tão cara aos mitos gregos, é um retrato vivo do legado invisível da linhagem familiar e que personifica a experiência do destino familiar.

Em outras palavras, essas características não são apenas padrões de hábito da comunicação e da atribuição de papéis estabelecidos pelo tempo, que determinam se sua mãe sempre deve sofrer ou ser mediadora de brigas, o pai sempre deve manifestar a raiva e a violência, ou se o filho ou a filha é asmático, anoréxico, obeso ou de alguma forma identificável como “o doente”. As características do sistema, em última análise, são arquétipos, o âmago dos padrões ou modos de percepção e expressão cujo melhor retrato é a imagem mítica.

Em relação ao casamento, na expressão de Joseph L. Henderson, ” pode considerar-se um rito de iniciação em que o homem e a mulher têm que submeter-se mutuamente. O casamento é essencialmente um rito de iniciação da mulher, em que o homem há de sentir-se tudo, menos um herói conquistador. Por isso mesmo, não surpreende que se encontrem em sociedades tribais ritos compensadores de semelhante temor como o rapto ou a violação da noiva. (BRANDÃO, 2004, pg 114)

As relações amorosas bem como as configurações familiares entre os deuses gregos sempre foram difíceis. A distinção dos pares é bastante clara na cultura grega. A mulher pode ser identificada à Afrodite. Segundo J. Brandão, ela seria o símbolo das forças irrefreáveis da fecundidade, não propriamente em seus frutos, mas em função do desejo ardente que essas mesmas forças irresistíveis ateiam nas entranhas de todas as criaturas. A deusa do amor sempre está a mostrar todo o seu poderio e força não apenas sobre os animais, mas até mesmo sobre o próprio Zeus. (BRANDÃO, 2004, pg 223). Quando Francine queima seu marido estaria ela manifestando o seu lado Afrodite da personalidade, por exemplo.

A deusa teria nascido do embate entre o deus dos deuses e seu pai.Após o governo de Urano e Crono, Zeus simboliza o reino do espírito. Embora não seja um deus criador, ele é o organizador do mundo exterior e interior. Dele depende a regularidade das leis físicas, sociais e morais. Consoante Mircea Eliade, Zeus é o arquétipo do chefe de família patriarcal. Deus da luz, do céu luminoso, é o pai dos deuses e dos homens. Enquanto deus do relâmpago, configura o espírito, a inteligência iluminada, a intuição outorgada pelo divino, a fonte da verdade. Como deus do raio, simboliza a cólera celeste, a punição, o castigo, a autoridade ultrajada, a fonte de justiça.

A figura de Zeus, após ultrapassar a imagem de um deus olímpico autoritário e fecundador, sempre às voltas com amantes mortais e imortais, até tornar-se um deus único e universal, percorreu um longo caminho, iluminado pela crítica filosófica e pela evolução lenta, mas constante da purificação do sentimento religioso (BRANDÃO, 2004, pg 310). Trata-se de uma autodefesa do macho segundo Junito Brandão:

De acordo com as ideias expressas na Teogonia de Hesíodo, que apresenta a origem e evolução dos deuses da mitologia grega, há uma relação de hierarquia e conflito entre pais e filhos, que é ilustrada por três gerações de deuses encabeçadas por Urano, Cronos e Zeus, em que o filho sempre destrona o pai e toma seu lugar. Tendo como referência este texto, entendemos que o arquétipo masculino está submetido à temporalidade, que muitas vezes encontra-se associado à cultura e à tradição. Em suma, o masculino, se expressando pelo arquétipo do pai ou pelo animus, possui as características de ser criativo e transformativo, sendo chamado por Jung de logosspermatikós.À nível pessoal, a transição do arquétipo da mãe para o do pai é considerada bastante significativa. Nos primeiros meses de vida, a criança está ligada ao solo, no qual engatinha, e, portanto, relaciona-se estreitamente com a mãe. Quando passa a ficar de pé, vê o mundo de outra perspectiva, a vertical, e ao passar da horizontalidade para a verticalidade começa a operar o arquétipo do pai. (BRANDÃO, 2004, pg 310)

Com a evolução da consciência, a importância da personalidade parental é reduzida, tanto na história da humanidade quanto na vida individual. No âmbito social, no lugar do pai aparece a sociedade dos homens, do mesmo modo que, no lugar da mãe surgiu a família. Jung considera estes fatos como uma ampliação que já estaria contida na imagem primitiva dos pais. São apontadas no livro Civilização em Transição, algumas dessas imagens de mãe e pai: A mãe, que providencia calor, proteção e alimento é também a lareira, a caverna ou cabana protetora e a plantação em volta.

A mãe é também a roça fértil e seu filho é o grão divino, o irmão e amigo dos homens. A mãe é vaca leiteira e rebanho (BRANDÃO, 2004, pg 312). O pai anda por aí, fala com os outros homens, caça, viaja, faz guerra, espalha seu mau humor qual tempestade e, sem muito refletir, muda a situação toda num piscar de olhos. Ele é a guerra e a arma, a causa de todas as mudanças. É o touro provocado para a violência ou para a preguiça apática. É a imagem de todas as forças elementares, benéficas ou prejudiciais.

Outro mito a ser notado é o de Héstia, Vesta para os romanos, uma deusa que simboliza os laços familiares, o fogo da lareira e a cidade (BRANDÃO, 2004). De acordo com a mitologia, é filha de Cronos e Reia, sendo uma das doze divindades olímpicas, e irmã mais velha de Demeter, Hera, Zeus, Poseidon, Hades. Era a personificação da moradia estável, onde as pessoas se reuniam para orar e oferecer sacrifícios aos deuses. Sendo, então adorada como protetora das cidades, das famílias e das colônias.

Como uma deusa casta, rejeitou todas as investidas amorosas para se manter virgem, especialmente do belo Apolo e de Poseidon. Jurou virgindade perante seu irmão Zeus, e dele recebeu a honra de ser venerada em todos os lares e de ser incluída em todos os sacrifícios e permanecer em paz, em seu palácio, cercada do respeito de deuses e mortais. Era representada como uma mulher jovem, com uma larga túnica e um véu sobre a cabeça e sobre os ombros.

Outra característica importante dessa deusa é a sua ligação com o fogo. Esse elemento seria o representante das paixões, das fortes emoções que queimam a pele, do desejo, da libido. O fogo queima, reduz às cinzas.O fogo também é um elemento que opera no centro das coisas, pois é um elemento centrado em si mesmo. Além disso, ele está em constante evolução, pois não consegue ficar “parado”.O elemento fogo é um dos mais frágeis dentre os quatro elementos. Basta observá-lo e perceber que tanto a água, quanto o ar e a terra podem eliminá-lo. Portanto vemos um paradoxo no fogo, além de ser extremamente destrutivo ele possui em si a fragilidade. É o único elemento que pode ser extinto.(MOURÃO, 2013)

Na Alquimia, o fogo estava ligado à operação conhecida como Calcinatio. Cujo processo químico consiste no intenso aquecimento de um sólido a fim de retirar dele toda a sua água.Retirar toda a água, nada mais é que simplesmente evaporar as emoções que não servem mais. É uma renovação das emoções, uma vez que a água remete a emoções e toda água parada cria limo, atrai insetos e perde, portanto a sua pureza, contaminando a psique com o veneno da emoção na trabalhada.

Mas como um elemento que simboliza emoções fortes, destrutividade, libido e até sexualidade pode estar relacionado a uma deusa comedida, virgem e pura? Parece incoerente, mas não é. Em Anatomia da psique, Edinger diz que o processo da Calcinatio vem da frustração dos desejos famintos e instintivos. Somente a provação do desejo frustrado pode levar ao desenvolvimento da personalidade ( EDINGER, 1995).

E esse é o ensinamento que o arquétipo representado por Héstia vem nos trazer. Suportar a frustração do desejo (representado em Héstia pelo desejo sexual) leva a interiorização e ao centro de si mesmo. A queima dos afetos pelo fogo leva a uma desidentificação com eles. O fogo destrói tudo o que é impuro, sendo então, o arquétipo de purificação. A purificação pela compreensão, levando a conscientização dos instintos até então inconscientes, os levando então a sua forma mais espiritual, pela luz da verdade e da consciência.

Héstia, portanto, simboliza o significado da personalidade, conferindo um ponto de referência interior que permite ao indivíduo permanecer firme em meio da confusão, desordem e afobação do dia-a-dia.Com Héstia entramos em contato com a luz e o calor interior nos sentindo aquecidos pelo fogo espiritual do si-mesmo. Francine foi Héstia descontrolada, buscando purificar sua subjetividade de tantas intrusões, violência. Tal descontrole apesar das implicações éticas e jurídicas como se pode notar, é totalmente compreensível. O fogo fora a solução de compromisso que encontrara. Segundo Jung (1986), “o arquétipo […] tem efeito numinoso, isto é, o sujeito é impelido por ele como pelo instinto, e este pode ser limitado e até subjugado por esta força, sendo supérfluo apresentar provas para isto” (JUNG, 1986, p.145).

  1. Brandão disse em seu livro: “talvez a atividade sexual da mulher castre o homem”. “O medo de ser enfraquecido pela mulher e sua estratégia sexual”, a lassidão e uma certa fadiga que se seguem após o coito impediriam a realização de atos viris e até mesmo o sucesso nos empreendimentos e negócios a que se dedica o homem. Otto Rank sintetizou bem o problema: “O desprezo que o homem afeta pela mulher é um sentimento que tem sua fonte na consciência, mas, no inconsciente, o homem teme a mulher”.204 “O sistema patriarcal tende então a ‘eliminar a mulher’, transformando em tabu qualquer tipo de aproximação. Nesse sentido, a nutrição é ligada inconscientemente à mãe”.205 Afinal, a mulher é hipóstase da Terra-Mãe, matriz dos alimentos e é da “carne e sangue” da mulher que se nutre o feto durante nove longos meses.

 

Tudo isso explicaria as restrições alimentares que incidem como tabu sobre a mesma, principalmente quando gestante, de resguardo ou menstruada. caracterizado por Jung como estando ligado ao desenvolvimento da consciência, tanto nos homens quanto nas mulheres. O arquétipo feminino, em contrapartida, é muitas vezes associado ao inconsciente. Ocorre uma importante polarização entre o arquétipo do pai, que tem como características ser intrusivo, penetrante e mental e o arquétipo da Grande Mãe que é tido como estático, material e auto contido.

Podemos dizer que ocorreram muitas mudanças sociais importantes envolvendo o lugar da mulher na sociedade, muitas ainda estão acontecendo e muitas ainda vão acontecer. Devemos reconhecer a importância da cultura, porém jamais subestimar o poder tanto da biologia quanto dos fundamentos arquetípicos da alma. A questão do gênero está presente, se não em todas, em quase todas as cosmogonias que conhecemos.

Nos mitos, um dos primeiros acontecimentos do mundo é a diferenciação entre masculino e feminino, e não somente em Adão e Eva, das religiões do Ocidente e do Oriente Médio; mas de mitologias de inúmeras culturas, em diversos tempos e lugares. Isso nos aponta para os fundamentos arquetípicos da diferença entre gêneros, algo muito anterior à cultura e que por esse motivo penetra nos mitos e na forma como as culturas constituem-se.

Jung levou muito a sério a questão do gênero em sua psicologia, ele fala de uma diferença fundamental, arquetípica, entre masculino e feminino, que não pode ser delimitada pelo biológico. Evidentemente que tais diferenças dependerão de cada cultura e cada tempo, mas o imaginário cultural acaba, sempre e de novo, construindo fantasias em trono daquilo que é próprio do homem e daquilo que é próprio da mulher. É como se cada cultura em cada tempo pusesse diferentes roupas no homem e na mulher, mas sempre havendo distinções marcantes entre as vestes masculinas e femininas. O filme aqui abordado possibilitou uma maior compreensão desses termos.

Referências Bibliográficas

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 2004.

EDINGER, E. – Anatomia da Psique, 10 ed. São Paulo: Cultrix, 1995

JUNG, C.G. Símbolos da Transformação. Petrópolis: Vozes, 1986.

MOURÃO, H. R.. Héstia e o fogo sagrado da purificação. 2013

YOUNG-EISENDRATH, P e DAWSON; T. (orgs). Manual de Cambridge para Estudos Jungianos. Porto Alegre : Artmed Editora, 2002.

ZWEIG, C. e ABRAMS, J. (orgs.) Ao Encontro da Sombra. São Paulo: Cultrix, 1998.

Deixe um comentário

Tendência